Chico Simões, Cali – Colômbia, 26/04/2016

Mamulengo, s.m. (bras.) Divertimento popular,

que consiste em representações dramáticas

por meio de bonecos.

Mestre Solon Alves de Mendonça (1920 – 1987) mamulengueiro de Carpina – PE, quando foi perguntado como e quando é que o teatro de bonecos tinha começado sorriu e disse: O boneco é anterior ao homem.

Várias tradições nos falam de seres humanos sendo criados a partir de bonecos. Segundo a bíblia, o primeiro ser humano nasceu na mesopotâmia, feito de barro e animado com o sopro do espírito. Segundo o Popo Vuh livro sagrado do povo Maia da América Central os primeiros humanos foram feitos de madeira. Na África muitas tradições falam de humanos criados a partir da mistura de diversos materiais como água, ferro, fogo e terra. Nativos da América do Sul falam na gênese dos seres humanos a partir de sementes e plantas…

Assim como conhecemos hoje, o teatro de bonecos pode ter surgido na Índia ou na China, são diversas as lendas sobre sua origem nesses dois países. Os gregos antigos também já conheciam esse teatro que chamavam de “neuropasta” (neuron = nervos). Na Turquia se chama Karagós, No Irã é Mubarack que quer dizer “Abençoado”. Na Roma antiga eram apresentados em comemorações e banquetes, e chamavam-se imagulae animate (imagens animadas), homunculi (homenzinho), ou, simplesmente, pupae (bonecos).

Existem teses sobre “títeres pré-hispânicos” na América Central e um monumento de pedra denominado “Bilbao 21”, na Guatemala, mostra uma figura asteca segurando em uma das mãos um boneco de luva. Historiadores cautelosos preferem falar em “representações de divindades” mas para alguns de nós o ator é sacerdote o teatro é um culto e o boneco uma divindade. 

No Brasil são poucos os registros sobre a chegada do Teatro de Bonecos e para complicar, em Portugal muitos documentos sobre as navegações se perderam no terremoto que devastou Lisboa em 1755. Documentos falam em um teatro de “presepes” trazido pelos Jesuítas para o convento de são Francisco em Olinda, mas se considerarmos que o teatro de bonecos apesar da perseguição que sofria, já corria o mundo também em sua forma profana, subversiva e divertida, pode-se perguntar por que os Jesuítas e não marinheiros anônimos introduziram o teatro de bonecos no Brasil? Quem sabe um ator degredado, condenado pelo crime de “profanar” o teatro de bonecos, contrariando os interesses do “sagrado” Santo Ofício, vindo no porão de um navio, tenha introduzido o teatro de bonecos no Brasil? Este teatro marginal, longe dos olhos da Inquisição e dos historiadores oficiais sempre existiu e sobrevive até hoje como porta voz dos excluídos, como herdeiro de uma tradição secular onde sagrado e profano viajam no mesmo barco, sentam-se na mesma mesa e se comem no mesmo prato.

Ao chegar ao Brasil o teatro de bonecos tinha vários nomes e formas distintas (Engonço, Bonifrate, Tourinha, Presepe…) e embora não possamos precisar por onde nem como ele chegou primeiro foi no nordeste onde absorvendo influências locais, mais se desenvolveu como arte popular recebendo logo diversos nomes e particularidades de acordo com a região (Mamulengo no Pernambuco, Babau na Paraíba, João Redondo ou Calunga no Rio Grande do Norte e Cassimiro Coco nos estados do Ceará, Piauí e Maranhão). Já existiu na Bahia como Mané Gostoso e em Minas Gerais e Interior de São Paulo com o nome de Briguela que é o mesmo nome que recebe no norte da Itália sendo também um personagem da Commedia Dell`arte.

Sobre as evidentes contribuições africanas e indígenas ao brinquedo não temos documentos históricos que registrem esses encontros, pois até hoje prevalecem as práticas discriminatórias e excludentes de negação dessas culturas na história do teatro no Brasil.

Um documento digno de registro é o livro O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis de Luiz Edmundo que nos fala de três tipos de Bonecos no século XVIII; Títeres de Capote, Títeres de Porta e Títeres de Sala.

Outra importante citação feita por Hermilo Borba Filho consta nos registros do Jornal Estado de Minas do ano de 1870 e narra uma apresentação na Casa da Ópera de Ouro Preto – MG de um teatro de bonecos movido desde a parte superior por varões na cabeça contando histórias da criação do mundo. Essa técnica e essas histórias são as mesmas contadas até hoje pelos Bonecos de Santo Aleixo em Portugal.

Outros registros do séculos XVIII e IXX são reclamações à polícia sobre atividades culturais populares de negros, consideradas imorais, criminosas e dignas de repressão. No final do século IXX aparecem os primeiros documentos dando notícias de atividades culturais com “mamulengos” nas festas populares de Recife em Pernambuco.

A estrutura do mamulengo

Em sua forma aparentemente simples, o mamulengo revela soluções cênicas originais e engenhosas. Centrada na capacidade de improvisação e no espírito cômico do mamulengueiro, cada “brincadeira“ é única. Através da comunicação direta com o público, os temas, personagens e histórias, são constantemente atualizados e adaptados às diferentes situações e platéias em que se apresentam, revelando uma estrutura singular, em constante estado de transformação mantendo ao mesmo tempo uma estética tradicional, carregando elementos históricos de um teatro popular, milenar e universal.

O mamulengueiro é geralmente um homem com grande capacidade para inventar histórias e improvisar situações com os bonecos, brincando com o público e fazendo críticas aos costumes sociais, esse artista popular viaja pelo mundo possível, as vezes convidado as vezes tentando a sorte, as vezes querido as vezes excomungado, as vezes só as vezes acompanhado por músicos.

Os bonecos, verdadeiros “tesouros da arbitrariedade caprichosa” são feitos, geralmente de madeira e tecido, de feições caricaturais sempre lembram algum tipo social bem conhecido; um político, um religioso, um aventureiro, um patrão, um doutor, uma senhora, uma moça solteira, um trabalhador rural, alguns bichos naturais, e até criações do outro mundo como almas penadas e diabos.

O palco pode ser qualquer tecido onde o mamulengueiro se esconda atrás e os bonecos possam subir para brincar, mas também encontramos barracas de madeira com boca de cena e cortinas de correr como nos palcos italianos.

Geralmente, o mamulengueiro hoje em dia brinca de pé, mas quando as brincadeiras eram mais longas, sobretudo na Zona da Mata Pernambucana os mestres brincavam sentados em baús, fazendo percussão com os pés em cima de uma mesa. Mestre Zé de Vina, de Lagoa do Itaenga – PE, brinca sentado como quase todos os mestres brincavam e vale a pena viajar longe para vê-lo brincar.

A música pode ser ao vivo (tocada por um grupo também chamado de “terno” ou “banco” ) ou mecânica e varia entre forró, baiano, coco ou frevo.

Confirmando a hereditariedade a estrutura dramática do mamulengo é a mesma da Commedia dell`arte. As histórias, contadas por personagens mais ou menos constantes, geralmente partem de antigos roteiros transmitidos oralmente de geração a geração, são clássicos populares que, adaptados livremente por cada mamulengueiro, vão se transformando para acompanhar a realidade sempre dinâmica da vida. De vez em quando, um mamulengueiro inventa uma cena ou um personagem novo, o que é muito bom para renovar a tradição.

Outras características marcantes do mamulengo são o improviso e a comunicação direta com o público, garantindo, assim, um mimetismo em permanente estado de ebulição e atualização histórica.

Transmitido oralmente, por convívio, de pai para filho, de mestre para aprendiz através de gerações, ao longo dos séculos, sobrevive, ainda, em sítios, povoados, praças, feiras e centros populares principalmente do nordeste, mas já pode ser visto também em cidades onde é marcante a presença de nordestinos como; Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro.

Antigamente, quando não existia a TV e outras formas de diversão, o mamulengo fazia muito sucesso em todo o nordeste, depois passou por uma grande crise, e quase desaparece sob as vistas grossas dos folcloristas conservadores que, em nome de um purismo nostálgico e mumificante combatem a renovação da cultura popular negando sempre o dinamismo próprio das tradições vivas.

Rompendo o isolamento e a exclusão a que esteve submetido o mamulengo é cada vez mais estudado como técnica teatral nas escolas de artes cênicas, sendo objeto de diversas teses acadêmicas. Em 5 de março de 2015 o Teatro Popular de Bonecos do Nordeste foi reconhecido pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional como Patrimônio Cultural Brasileiro indicando que o estado deve adotar políticas de salvaguarda e apoio a brincadeira e aos brincantes.

Finalmente o mamulengo brasileiro tem se renovado mantendo suas estruturas tradicionais, mas atualizando seus conteúdos, buscando novos públicos e espaços, se tornado meio de vida de muita gente que vai descobrindo outras funções para os velhos e universais arquétipos dessa tradição milenar.

Referências bibliográficas

BORBA FILHO. Hermilo – Fisionomia e Espírito do Mamulengo. Rio de Janeiro: INACEN, 1987.

EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis. Rio de Janeiro: Conquista, 1956.

FREDDY, Artiles. Títeres História, Teoria e Tradicion. Zaragoza: Teatro Arbolé, 1998.

REVISTA QUIROPTERUS – ano 1, no1. Manos Aladas. Bogotá: 1991.

Pin It on Pinterest