Nascemos com este sentimento, somos seres essencialmente teatrais.”

Nicolau Evreinof

Chico Simões

Na gênese do teatro está a necessidade humana de se comunicar através de símbolos com o objetivo de comungar experiências. Esta habilidade de comunicação foi chamada pelo estudioso russo Nicholas Evreinov de “transfiguração” ou ação através de figura.

Se considerarmos essa necessidade humana de “transfiguração” anterior a necessidade de explicar os fenômenos “sobrenaturais” podemos deduzir que os ritos “teatrais” deram origem aos ritos “religiosos” pois do uso “transfigurado” de objetos como pedras, madeiras, ossos e peles para contar histórias é que surgiram os símbolos, ritos e mitos que pretendem explicar o mundo.

Imagine um caçador pré-histórico, um pré-ator, desgarrado do bando, solitário e faminto perseguindo outro animal, também predador, solitário e faminto… Haverá um encontro e uma luta e o resultado será determinado pela força, instinto e experiência de cada um. Caçar é uma atividade complexa que envolve riscos e o clima é de tensão e suspense… O caçador humano, mais experiente e com mais memória “ram”, espreita, expia, decifra sinais deixados pelo caminho, segue pistas, aciona e aguça os sentidos, sente o vento, cheiros, sons, vê, lê, organiza mentalmente informações e faz cálculos, reinventa a serventia de objetos para utilizá-los como arma, aproxima-se sorrateiramente da caça, concentra-se, reúne forças e com toda energia disponível ataca, libera adrenalina para vencer o medo, dilata corpo e voz, luta, grita e finalmente, subjuga a presa desferindo um golpe fatal.

Uma mistura de êxtase e cansaço se apodera do caçador. Ele respira fundo, olha em volta para verificar que está seguro e só em sua vitória. Sente uma estranha necessidade de compartilhar esse momento, comunicar a outro da mesma espécie a experiência vivida. Comungar a ação.

Saciada a fome imediata é preciso voltar ao núcleo comunitário, à caverna, ao convívio seguro do grupo familiar. Com alguma dificuldade, ele transporta tudo o que não consumiu da caça. A capacidade de ordenar a memória é determinante para tudo o que ele faz, inclusive para imaginar e avançar em direção ao futuro, que aparece para ele como uma espécie de memória reinventada, mas ele vive no presente e tão logo chega ao terreiro da caverna um faminto grupo de semelhantes avança na carne ainda fresca e ensangüentada.

O sol se põe e uma fogueira é acesa na entrada da caverna. Nosso ator/caçador, observa o fogo e a roda de semelhantes. De repente se lembra da luta solitária que travou com a caça. Dela resta o esqueleto desmontado e uma manta de pele ensangüentada. O fogo esquenta e a memória insiste, então o ator é impulsionado a “narrar” o ocorrido naquele dia.

No centro da roda, com grunhidos e gritos entrecortados de pausas e movimentos que recriam a ação vivida, ele vai contando sua história… O que restou da caça também parece cobrar vida e o ator não vacila, agarra os ossos, veste a pele e urra imitando o animal que também luta com ferocidade, a luz trêmula da fogueira projeta na parede da caverna sombras fantasmagóricas que representam no momento presente uma ação passada que pode ser também o futuro. O tempo linear dá lugar a “eviternidade” própria da ficção. A cena é contagiante… O público reconhece embaixo da manta do animal, o caçador. Ele também tem consciência do jogo inventado que pratica mas o disfarce revela o vivido como um veículo, uma ponte, uma conexão entre a experiência pessoal e o outro. A ação se recria, nosso pré-ator volta a experimentar em si uma energia diferente, não sente o mesmo que sentiu quando lutava realmente mas também não age como no dia-a-dia e desprendendo essa nova energia o caçador “atua” recriando a cena da luta com a caça através de transfiguração, dilata corpo e voz, urra, grita… o público admirado acompanha também aos gritos…. As sombras se multiplicam na parede, todos dançam imitando o caçador e a caça até que finalmente nosso ator desfere um golpe final e grita. Como um orgasmo o êxtase é comungado e finalmente todos relaxam tranqüilos. O teatro esta consumado.

Uma experiência particular que poderia ser única e se perder no tempo não fosse o fato de que no dia seguinte ninguém conseguiu nada pra comer e a noite famintos e tristes reunidos em volta da fogueira, olhando para os ossos já quebrados e chupados até o tutano e para a pele rasgada do banquete do dia anterior se lembraram da cena representada e sentiram uma estranha vontade de revive-la… Nosso ator também sentia desejo de compartilhar mais uma vez a experiência e pulou pro centro da roda, explorando com os ossos e o figurino a memória física dos movimentos. Novamente seu corpo foi dilatado por uma energia extra diferente do que sentiu durante a luta, agora o único perigo era não lograr a comunicação desejada e ele se concentrou na memória sem perder de vista o público que logo reconheceu o jogo participando com gritos, imitações e estímulos que levaram o ator a mais uma vez consumar o drama saciando a fome do espírito na esperança de assim também alimentar o corpo. Um alento, afinal todos terminaram mais cansados e famintos embora experimentando uma estranha sensação de prazer.

A luz da fogueira que iluminou aquela cena também se apagou, mas o dia seguinte nunca mais foi o mesmo para aquele grupo porque toda vez que a fome apontava para o futuro, o teatro se repetia como memória e antecipação do futuro, como ritual de preparação para a concreta, vital e perigosa ação de caçar.

Com o passar do tempo, sem forças para lutas ou encenações nosso caçador/ator passou essa tarefa para os mais jovens e se transformou em educador se dedicando a ensinar, pintando nas paredes da caverna, cenas das caçadas para que atentos alunos apreendessem através de signos a enfrentar o perigo real, um animal caçado ou qualquer outro adversário. Ainda mais velho, como sacerdote chefe, carregando sobre a cabeça o crânio e vestido em pele de urso, apoiado no bastão que um dia foi sua arma, abençoava os jovens que partiam para a guerra, protegendo-os com sinais que os fariam lembrar no calor da luta que aquela experiência pessoal, vital e perigosa também fazia parte de outra experiência coletiva, vital e prazerosa que era representada em volta do fogo, na porta da caverna.

Chico Simões

Cali Colômbia – 24/04/2016

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