Em busca de conviver com mestres do teatro popular de bonecos vamos a Juazeiro do Norte, a Jerusalém sertaneja no Vale do Cariri, estado do Ceará nordeste do Brasil no ano da graça de nosso senhor Jesus Cristo de 1983. O ambiente é delirante. Milhares de romeiros se deslocam, como nós, rumo à “terra santa”. Os moradores seguem a risca, a recomendação do santo padre Cícero Romão (1844-1934)[1]; “Em cada casa uma oficina em cada oficina um oratório”. Os penitentes atropelam-se em peregrinação ao horto na colina onde repousam os restos mortais do padre santo e se ergue uma estátua de 27 metros de altura. Movidos pela fé, chegam dos quatro cantos do mundo em procissão, o principal meio de transporte é o caminhão pau-de-arara, mas muitos grupos de peregrinos penitentes são vistos a pé pelos caminhos, alguns pra completar o rosário de sofrimento, se auto-flagelam. Carregam em forma de ex-votos os escombros do passado de enfermidades, são partes do corpo humano esculpidas em madeira, cera ou argila, milhares de cabeças, vísceras, troncos e membros somam-se a muletas, próteses e toda sorte de aparatos e aparelhos ex-usados, fotografias de enfermos, roupas, mechas de cabelo, velas e fitas, flores de plástico se confundem com flores vivas e mortas. Esses ex-votos enchem igrejas e salões paroquiais já abarrotados de penitentes que rezam antes de subir ao horto pagando promessas. Antes fazem a obrigatória visita aos mortos dos cemitérios que são quase dentro das igrejas completando a arquitetura mórbida do cristianismo medieval. No cemitério também os mortos disputam vagas e não raro se tropeça em ossos sempre desalojados para que os túmulos recebam novos inquilinos. Ao pé da subida do horto peregrinos formam uma longa fila para passar por uma estreita fenda escavada em uma pedra, acreditando que deixam ai seus pecados, sobem a via sacra e o passeio das almas carregando pedra na cabeça ou de joelhos ou as duas coisas… Vendedores ambulantes alimentam o intenso comércio e a multidão faminta de pão e salvação. Crianças maltrapilhas e maltratadas contam, por uma moeda, em versos rimados, a incrível história da hóstia que se transformou em sangue na boca da beata Maria de Araújo e outros milagres realizados pelo “Padinho Cícero Romão”. Fotógrafos “lambe-lambe” misturam-se aos Polaroids para oferecer instantaneamente uma imagem do romeiro ao lado do Santo Padre. Violeiros repentistas improvisam pelejas de cantoria, enquanto vendem folhetos de literatura de cordel. São relatos “transhistóricos”, histórias de amor e de guerra. No horto a realidade é feita de ficção. Cegos cantam, a centena de anos, seus sofrimentos, suplicando esmolas e fazendo soar rabecas, violas e sanfonas pé-de-bode, afinadas em dissonantes harmonias, tudo tão real e tão mágico que na “hora do angelus” ao badalar dos sinos se instala na cidade uma atmosfera de eviternidade atemporal, onde Jesus Cristo, São Pedro, Carlos Magno e os Doze Pares de França, Roldão, Homero, Hércules, Sansão e Dalila convivem e são contemporâneos de Padre Cícero e beatos. Esses titãs ainda hoje andam pelo sertão, promovendo milagres e alimentando de fé um povo que só por ela vive. A noite a multidão de devotos que chega a ser cinco vezes maior que a população da cidade se arrancha em abrigos improvisados onde armam suas redes e dormem amontoados. Os que ficam pela rua ainda vão assistir as danças, que também são lutas, de espada dos reisados e guerreiros, as lapinhas, as bandas de pife, cabaçais, bumba-meu-boi e com um pouco de sorte uma brincadeira de “cassimiro coco” que é o nome que o mamulengo recebe por essas bandas.
Aqui, onde a terra se move sob nossos pés fica claro a sentença de Glauber Rocha: “Cultura popular não é o que se chama tecnicamente de folclore”. Agora, o letrado conhecimento acadêmico revela-se um “pré-conceito”, um “pré-juizo”.
Estamos com sorte, no bairro do Romeirão, a “Carroça de Mamulengos”, do Mestre Carlo Babau, prepara-se para mais uma brincadeira. É uma renovação[2], a barraca tem armação de madeira e é revestida por uma tolda de chitão. Não há luz elétrica, acendem-se vários lampiões e lentamente a multidão aproxima-se. A arte do boneco popular não divide o público por faixa etária. Uns trazem seus acentos outros acomodam-se como podem, Zé Oliveira, cego, afina a velha rabeca, acompanhado por zabumba e triangulo improvisa um “esquenta”. É o último aviso, a função vai começar: Os primeiros bonecos que aparecem na tolda, são de vara, dançam fazendo presepadas, dão cambalhotas, rebolam e esticam o pescoço provocando no público as primeiras gargalhadas, devolvendo ao brincante o prazer do brincar. Mestre Zé Oliveira sorri abanando a cabeça como se enxergasse cada graça realizada com precisão pelos bonecos dançarinos; Janeiro, Palhaço da Vitória e Quitéria. A rabeca forrozando alto confirma a festa e quem espiava de longe se achega pra ver de perto. Uma criança mais afoita tenta levantar o pano da tolda para ver como é que aquela engenharia toda funciona mas é puxada de volta e reprimida por um adulto responsável por não deixar ninguém se atrever pro lado da barraca. Os bonecos de luva entram em ação; O sanfoneiro Velhin Paruara afunfa o fole distoando da raqueca de Zé Oliveira que reclama com razão até acertarem o tom mas justamente ai o Sanfoneiro vai embora e sobe Benedito Bendito Grito Bacurau da Silva Babau da no Oco da no Pau da Serra do Berdoega Inverga mas não Quebra Esticou Enrrolou Abraçou Namorou Beijou Xiiii Pou! Se apresenta e canta um dolente aboio pro Boi Estrela subir… dançam, brigam, brincam e vão simbora. Cotinha a esposa de Benedito está grávida e procura pelo marido, a criança vai nascer…. Mané Gostoso, namorador de todas das moças solteiras presentes na platéia, dispensando-as vai visitar Julieta, a filha do Capitão João Redondo mas ambos são engolidos pela cobra, entra a polícia; Sargento Cabaça, Cabo Zé Setenta e Soldado Tampinha e todos são engolidos pela cobra… Daí segue-se um desfile de bonecos que são engolidos pela cobra; Joaquim Catimbozeiro, Capitão João Redondo, Baltazar, o menino Gogório… Todos tem o mesmo fim até que Benedito volta anunciando o nascimento do menino que vai se chamar Cassimiro Coco Cravo de Lima Flor das Moças Alecrim das Meninas. A cobra volta e quer comer Benedito mas nosso herói é mais esperto e depois de muita batalha onde usa desde um cacete até uma pistola de espoleta, com uma peixeira baiana mata a cobra e retira de dentro dela todos aqueles a que o público achar conveniente, os outros vão sair pelo outro lado, “pra saber o que é passar aperto” e segue a comédia ao sabor de improvisações e participações sugestivas do público, os músicos também improvisam e participam dos diálogos com os bonecos. Nessa ocasião, por se tratar de uma “renovação” não houve arrecadação de contribuições pecuniárias e a brincadeira durou apenas duas horas mas dizem que antigamente uma função dessas durava até uma noite inteira e ia “esquentando” a medida que as crianças e depois as mulheres iam se retirando, ficando para a madrugada os aficionados e bêbados que literalmente pagavam por cada cena que desejavam assistir ou para que os bonecos tecessem elogios a sua pessoa. Os tempos mudam… O povaréu se dispersa, na esquina da rua um carrinho de “hot dog” vende pinga e churrasquinho assado na brasa, o calor convida à rua. Essas noites não passam nunca…
Alípio Carvalho Neto e Chico Simões
[1] Líder religioso, messiânico e progressista que ali vivera, e que, perseguido pelos “coronéis” da política, regional e nacional, fizera uma aliança estratégica com o mais famoso herói brasileiro, Lampião, o rei do cangaço. Desprezado pelo Vaticano, o Padre Cícero foi canonizado pelo povo, que ainda hoje o venera como santo.
[2] Festa religiosa e recreativa realizada uma vez por ano na casa de devotos do padre Cícero com o objetivo de celebrar o mutirão da renovação do oratório, de pequenas reformas na casa e sobretudo da fé que fortalece os laços comunitários de solidariedade.